Para a gente refletir ...
Viviam juntos há anos, tragados pela rotina, essa mesmice atordoante, reprise cotidiana de um calendário imutável de quem jamais se imagina dominando o tempo: o banho matinal às pressas, o café engolido, o jornal lido pelas manchetes, o trabalho, o almoço corrido, o trabalho, o lanche da tarde e a noite centrada na TV soberana.
Havia sempre uma voz exterior a decretar o silêncio do casal. Pela manhã, o rádio, as notícias do outro lado do mundo, o horóscopo do jornal, os índices do mercado financeiro. E telefonemas familiares. Havia pouco tempo para palavras entre eles: não esquecer de comprar azeite, a conta do telefone, cumprimentar o irmão pelo aniversário, a revisão do carro, o cuidado dos filhos. Tudo muito telegráfico enquanto se penteava o cabelo e vestia a roupa. Bastavam-lhes um vocabulário trivial, exíguo, onomatopéico.
Foi numa dessas noites de solidão partilhada que, súbito, vencido o estado de hipnose, ela desligou o televisor, justamente quando a novela atingia aquele momento de ápice que convida os telespectadores a retornarem dia seguinte. Ele estranhou. Antes de se manifestar, cultivou perplexo seu monólogo interior. O que deu nela? Por que esse gesto impetuoso? Algo na novela a incomodou?
Toda quebra de rotina é um atentado a mecanismos atávicos. Amantes são intempestivos, implodem previsões, irrompem insólitos como vulcões que se recusam a adormecer. Depois o casamento os faz parentes um do outro. As lavas esfriam, a boca incandescente apaga-se, o que era vulcão se transforma numa bucólica montanha apaziguada por brisas suaves, às vezes atingida por pequenos abalos sísmicos.
As coisas retomam a sua cronologia, o seu ritmo, e depois de tantos anos de convivência não é nada fácil admitir que há no outro um estranho, um lado oculto, submerso, que de repente emerge e desestabiliza. Melhor que a fera seja mantida à distância, enjaulada nas racionalizações que matam a jovialidade e domesticada pelo temor de reinventar a si mesmo, camuflada sob o manto da suposta maturidade.
Ele conseguiu manifestar seu desconforto. Enfadara-se ela com o enredo da novela? Andava indisposta? Tinha sono? Não é isso, não é nada disso, ela falou. Quero apenas conversar com você. Há quanto tempo somos o duplo de nós mesmos? Há quanto tempo exibimos pela casa fantasmas que encobrem a nossa verdadeira identidade? Já não suporto esse silêncio. Quero falar de mim, saber de você, refletir, pensar junto, trazer à tona nossas interrogações diante da vida.
Curvada sobre ele, ela o segurou carinhosamente pelos ombros e o fitou nos olhos. Como vai você? O que tem pensado, sonhado, desejado? Apertou-lhe o peito com a mão espalmada: O que sente aqui? Ainda me ama como antes? É feliz?
Ele desconversou. Não estava preparado para inquirições àquela hora da noite. E, ao longo dos anos, aprendera a engolir inquietações, perguntas, desconfianças, disposto a pagar o preço do risco por uma tranqüilidade insofismável. Agora, diante dessa turbulência inesperada em pleno vôo, não sabia o que dizer e temia ser traído pelas palavras.
Recorreu ao parco vocabulário de uma convivência corriqueira, enfeixou na voz um grupo de sentenças banais e respondeu que a amava muito, sentia-se bem, feliz porque as coisas haviam melhorado no trabalho. Que tal se abrirmos um vinho?, propôs. Ela consentiu, dispôs-se a buscá-lo. Ao voltar da cozinha com a garrafa, as taças e os canapés, encontrou-o atento ao noticiário de esportes na TV.
Serviram-se e ela se recolheu ao mutismo, acrescentou apenas algumas frases a respeito de si mesma. Beberam como se tomassem fel. Pouco depois, pretextando cansaço, ela precipitou-se rumo ao quarto de dormir.
Ele ficou só. Sentiu medo de seu duplo, de seus fantasmas interiores, de tantas perguntas amordaçadas no fundo de seu peito. Tirou o som da TV e chorou como há muito tempo não o fazia. Sentia muita vergonha de si mesmo.
Frei Betto é escritor e autor, entre outros livros, de "Típicos Tipos - perfis literários" (A Girafa), Prêmio Jabuti 2005
Havia sempre uma voz exterior a decretar o silêncio do casal. Pela manhã, o rádio, as notícias do outro lado do mundo, o horóscopo do jornal, os índices do mercado financeiro. E telefonemas familiares. Havia pouco tempo para palavras entre eles: não esquecer de comprar azeite, a conta do telefone, cumprimentar o irmão pelo aniversário, a revisão do carro, o cuidado dos filhos. Tudo muito telegráfico enquanto se penteava o cabelo e vestia a roupa. Bastavam-lhes um vocabulário trivial, exíguo, onomatopéico.
Foi numa dessas noites de solidão partilhada que, súbito, vencido o estado de hipnose, ela desligou o televisor, justamente quando a novela atingia aquele momento de ápice que convida os telespectadores a retornarem dia seguinte. Ele estranhou. Antes de se manifestar, cultivou perplexo seu monólogo interior. O que deu nela? Por que esse gesto impetuoso? Algo na novela a incomodou?
Toda quebra de rotina é um atentado a mecanismos atávicos. Amantes são intempestivos, implodem previsões, irrompem insólitos como vulcões que se recusam a adormecer. Depois o casamento os faz parentes um do outro. As lavas esfriam, a boca incandescente apaga-se, o que era vulcão se transforma numa bucólica montanha apaziguada por brisas suaves, às vezes atingida por pequenos abalos sísmicos.
As coisas retomam a sua cronologia, o seu ritmo, e depois de tantos anos de convivência não é nada fácil admitir que há no outro um estranho, um lado oculto, submerso, que de repente emerge e desestabiliza. Melhor que a fera seja mantida à distância, enjaulada nas racionalizações que matam a jovialidade e domesticada pelo temor de reinventar a si mesmo, camuflada sob o manto da suposta maturidade.
Ele conseguiu manifestar seu desconforto. Enfadara-se ela com o enredo da novela? Andava indisposta? Tinha sono? Não é isso, não é nada disso, ela falou. Quero apenas conversar com você. Há quanto tempo somos o duplo de nós mesmos? Há quanto tempo exibimos pela casa fantasmas que encobrem a nossa verdadeira identidade? Já não suporto esse silêncio. Quero falar de mim, saber de você, refletir, pensar junto, trazer à tona nossas interrogações diante da vida.
Curvada sobre ele, ela o segurou carinhosamente pelos ombros e o fitou nos olhos. Como vai você? O que tem pensado, sonhado, desejado? Apertou-lhe o peito com a mão espalmada: O que sente aqui? Ainda me ama como antes? É feliz?
Ele desconversou. Não estava preparado para inquirições àquela hora da noite. E, ao longo dos anos, aprendera a engolir inquietações, perguntas, desconfianças, disposto a pagar o preço do risco por uma tranqüilidade insofismável. Agora, diante dessa turbulência inesperada em pleno vôo, não sabia o que dizer e temia ser traído pelas palavras.
Recorreu ao parco vocabulário de uma convivência corriqueira, enfeixou na voz um grupo de sentenças banais e respondeu que a amava muito, sentia-se bem, feliz porque as coisas haviam melhorado no trabalho. Que tal se abrirmos um vinho?, propôs. Ela consentiu, dispôs-se a buscá-lo. Ao voltar da cozinha com a garrafa, as taças e os canapés, encontrou-o atento ao noticiário de esportes na TV.
Serviram-se e ela se recolheu ao mutismo, acrescentou apenas algumas frases a respeito de si mesma. Beberam como se tomassem fel. Pouco depois, pretextando cansaço, ela precipitou-se rumo ao quarto de dormir.
Ele ficou só. Sentiu medo de seu duplo, de seus fantasmas interiores, de tantas perguntas amordaçadas no fundo de seu peito. Tirou o som da TV e chorou como há muito tempo não o fazia. Sentia muita vergonha de si mesmo.
Frei Betto é escritor e autor, entre outros livros, de "Típicos Tipos - perfis literários" (A Girafa), Prêmio Jabuti 2005
10 Comments:
At 3:34 AM,
Olha...e se eu pudesse entrar na sua vida... said…
que texto maravilhoso! nossa quantas vezes jah num tomamos desse fel neh? obrigada pelo post! bjim
At 3:47 AM,
Paulo de Tarso said…
Mari,
Recebi este texto por causa do site
www.bancariosrjes.org.br, não poderia deixar de dividir com vc e com outros amigos queridos.
bjs
At 3:59 AM,
Unknown said…
Orai e vigiai. Maravilhoso o texto realmente. E tão difícil não se deixar virar montanha morta... Obrigado por compartilhá-lo!
At 4:43 AM,
Paulo de Tarso said…
Edu,
Todos nós em algum momento passamos por isso. Examinar nossos
erros, é uma das formas de passarmos uma borracha sobre eles e
recomeçarmos. Como diria Ivan Lins:
"começar de novo e contar contigo/vai valer a pena ter amanhecido"
At 5:23 PM,
Bruno Capelas said…
Bem... eu conheço o Frei Betto pelas lutas nos anos 70. E só. Quanto ao disco novo do Neil Young , é... bem... é um disco bom , mas Neil já fez discos melhores. Se você quer algo realmente substancioso dele , procure nessa ordem , os discos:Harvest , Aftet the Goldrush , Comes a Time , Harvest Moon e Sleeps With Angels.
Um abraço!
At 3:42 AM,
Paulo de Tarso said…
Bruno,
Obrigado pelas dicas! Já tenho Comes a Time, Harvest Moon e Sleeps With Angels. Vou correr atrás dos outros, pois já tinha interesse no Harvest.
Abraço Younguiano,
At 3:26 AM,
Ronzi Zacchi said…
Hoho! Eu tenho o disco novo do Belle & Sebastian!!! E é bom!!!!
At 4:47 AM,
Lili said…
Muito bom.
Bjo.
At 4:58 AM,
Paulo de Tarso said…
Lili,
Frei Betto é ótimo, mesmo quando não escreve sobre política.Bj,
Moço Ronzi,
Ainda não me acertei com o Belle. Quem sabe esse cd me empolga?
Abs,
At 7:04 PM,
Paulo de Tarso said…
Monica,
Este texto é de um brasileiro muito digno chamado Frei Betto. Quanto ao elogio, fico lisongeado pela parte que me toca e por causa de quem o faz.
bj,
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